sábado, 10 de janeiro de 2015

O que é pior, ser ateu ou vegetariano?

Já se vão quase três séculos após o iluminismo, e os tempos estão bastante escuros. Muitos gostariam de pensar que a alta idade média e a sua estreiteza intelectual são coisas de um passado distante, mas parece não ser bem o caso: poucas opções pessoais causam maior consternação nos dias de hoje do que se dizer ateu. Trata-se de praticamente cometer um suicídio social: o indivíduo não é mais aceito ou respeitado como era antes, passa a ser visto com maus olhos; pode ser preterido em sua carreira profissional ou mesmo demitido; sua capacidade ética e moral são questionadas, para não falar de sua capacidade como pai ou mãe de família. Tudo corre como se o sujeito, ao se dizer ateu, afrontasse mortalmente aqueles que creem em deus, como uma ofensa pessoal. Ora, eu poderia argumentar o mesmo, no sentido contrário: saber que há pessoas que ainda acreditam em deus incomoda os ateus, por verem tantos adultos num — como diria Freud — lamentável estado de infantilismo psicológico. Há conhecidos que pararam de falar comigo quando souberam que eu era materialista; eu, por outro lado, sou educado, e dou bom dia a todos quando os encontro, tanto os que creem em deus como os ateus, indistintamente. Recentemente, a presidente eleita disse que irá “respeitar a liberdade de culto religioso”. Liberdade de culto religioso? Eu pensei que devêssemos respeitar a liberdade de pensamento, a liberdade de opinião, e não “a liberdade de culto”! Mas isso se dá num país laico, o que deveria ser o caso do Brasil: apesar do preâmbulo infeliz, a constituição deixa isso bem claro, como no artigo 19. Contudo, o que deveria ser não necessariamente é.
Com isso em mente, eu estava a me perguntar num dia desses: que opção ou opinião pessoal (que não constitua crime, é claro) é mais capaz de ofender as pessoas que o ateísmo? Em minha vivência, a resposta parece ser bem clara: o vegetarianismo (ou, mais que o vegetarianismo, o veganismo). Apesar de ter criado esse weblog para discutir aspectos da biologia evolutiva, gosto muito (e creio ser bastante relevante) abordar temas que relacionem o comportamento humano à preservação (ou melhor, à destruição!) ambiental, e esse é um tema chave nos dias de hoje. Por isso, gostaria de me debruçar um pouco sobre essa questão.

Propaganda de hamburger de vegetais na Austrália, para aqueles que, mesmo vegetarianos, não passam sem uma junk food!
Do mesmo modo que em relação ao ateísmo, dizer-se vegetariano parece ser uma afronta pessoal para a maioria das pessoas, como se você as estivesse ofendendo. Isso é algo curioso, pois mesmo os mais grosseiros e embrutecidos seres humanos, e há grande quantidade desses por aí, concordam que o planeta é um só e que nós devemos preservá-lo. A imensa maioria das pessoas, do mesmo modo, está ciente da importância da preservação não só das florestas mas dos biomas em geral. Mesmo as pessoas que nada fazem para mudar seu comportamento e que continuam procriando, povoando mais ainda o planeta de crianças com os mesmos hábitos devastadores, mesmo essas sabem da importância da preservação dos ambientes. A imensa maioria das pessoas reconhece o sofrimento animal, e com exceção de uns poucos psicopatas ou sociopatas, todos defendem o fim do sofrimento animal e a melhoria do seu bem-estar, incluindo-se como animais o próprio ser humano.
Em nossas atividades diárias, nada, e eu quero enfatizar veementemente o nada, nada tem maior impacto na economia de água do planeta, na preservação das florestas e dos ecossistemas, na redução das emissões de gases estufa e na redução da imensa ubiquidade do sofrimento animal que uma mudança nos nossos hábitos alimentares, nomeadamente: deixar de comer animais. Mas, como já disse Jonathan Foer, apesar de quase todos concordarem que a maneira como tratamos os outros animais e o ambiente é importante, virtualmente a maioria dessas pessoas nada faz e, quando encontram aqueles poucos que tomam uma atitude, isto é, param de comer animais, ao invés de dizerem “que legal, eu não consigo ainda parar, mas que bom que você conseguiu!”, ou “parabéns, você está reduzindo a pressão sobre o planeta” ou mesmo “que bonita sua atitude”, normalmente nos tratam como estranhos, ou radicais, ou como pessoas sem o juízo perfeito, ou seja, loucos. John Maxwell Coetzee discute isso num livro magistral, chamado “A vida dos animais”, onde a mãe do protagonista, vegetariana e ativista contra o sofrimento animal, é vista por esse como uma velha excêntrica; sua mulher vê com maus olhos a presença da sogra em sua casa, pois essa pode “contaminar” seus filhos com o seu “estranho hábito vegetariano”.
Eu gostava muito do sabor da carne, daí o sacrifício que foi parar de comê-la. Posturas morais exigem, ou melhor, resultam em sacrifícios, em perdas. É muito fácil tomar uma posição que não exija esforço, por isso eu sou pessimista quanto a uma série de problemas ambientais, pois a maioria das pessoas só pensa nas vantagens imediatas e individuais. Se um carro com um equipamento que emite menos óxido nitroso e gás carbônico tem um preço maior que o mesmo modelo sem esse equipamento de redução, as pessoas tendem a comprar o carro mais barato. Elas não percebem que a preservação da Terra envolve custos: nós temos que comprar lâmpadas fluorescentes, mesmo que sejam mais caras que as incandescentes. Se uma madeira certificada custa duas vezes mais que uma ilegal, nós temos que gastar mais dinheiro comprando a certificada, esse é o preço da preservação. Do mesmo modo, nós temos que abrir mão do conforto de andar em carros particulares pelo uso de transporte público, que inegavelmente é menos confortável. Mas, se não fizermos isso, não haverá mais planeta onde você desfrute o conforto do seu carro novinho. Voltando à questão de comer animais, lembro-me da famosa frase de Oscar Wilde: “posso resistir a tudo, menos a uma tentação”. Apesar de tradicionalmente o vegetarianismo ser praticado por pessoas que, pelas mais diversas razões místicas, consideram que a carne faz mal ao seu organismo, a maior parte dos vegetarianos modernos, e aqui eu me incluo, não come animais por considerar que isso faz mal para o ambiente, para a Terra e sobretudo para os animais. Quando questionado por que não comia animais, Isaac Bashevis Singer disse que fazia isso por causa da saúde, mas não da sua, e sim do animal a ser morto. O mesmo Singer tem uma frase interessante a respeito do que chamamos falácias naturalistas, que discutirei mais abaixo: “People often say that humans have always eaten animals, as if this is a justification for continuing the practice. According to this logic, we should not try to prevent people from murdering other people, since this has also been done since the earliest of times.” Portanto, quando eu evito comer galinhas faço isso não pensando em mim, na minha saúde, e sim nas galinhas (especialmente as produtoras de ovos), que geralmente são mantidas em espaços da área de uma embalagem de DVD por toda sua vida, de umas poucas semanas. Você deve estar familiarizado com o tamanho de uma embalagem de DVD. Se duvida, veja a imagem abaixo.

Galinhas poedeiras em uma bateria de gaiolas (Fonte: Reuters).
Como se percebe, optar por ser vegetariano é uma escolha moral com perdas, que envolve sacrifícios. Não deveria portanto uma escolha como essa ser pelo menos parabenizada?
Antes que eu sumarie os principais motivos para essa escolha alimentar, convém falar um pouco sobre os principais argumentos contrários. Alguns são emitidos por pessoas intelectualmente desonestas, outros por pessoas que não percebem a atual situação do planeta, e pensam que podem continuar com seus hábitos infinitamente. Outros, ainda, estão sensíveis à questão ambiental e ao sofrimento animal, mas têm preocupações (genuínas) com sua saúde. O primeiro grupo de críticas se enquadra no que nós em filosofia denominamos de falácias naturalistas (tecnicamente falando, “falácias do apelo à natureza”), ou seja, falácias que associam o “natural” ao “bom” e o “não natural” ao “ruim”. Como disse Singer, algumas pessoas alegam que “o ser humano sempre comeu carne”. Que tipo de argumento é esse? Em primeiro lugar, o ser humano não comeu carne sempre; muito tempo após a separação de nosso ancestral comum com os chimpanzés e os bonobos nós ainda não comíamos carne, e só passamos a fazê-lo há 1,8 milhão de anos. Em seguida, alega-se que o consumo de carne foi responsável pela grande mudança evolutiva que possibilitou o aumento de nossas estruturas nervosas. Isso está correto, pois o consumo de carne propiciou os primeiros Homo uma dieta não só bastante calórica como rica em proteínas. Mas isso foi uma questão competitiva, não faz mais sentido algum hoje. Uma criança alimentada com vegetais e uma alimentada com carne terão o mesmo desenvolvimento, se não houver competição por recursos (e eu imagino que você alimente adequadamente seu filho). Ainda outro argumento, em relação ao sofrimento animal, é que na natureza os animais matam-se uns aos outros. Quem usa esse argumento demonstra uma clara desonestidade intelectual. Bem, em primeiro lugar, na natureza não há o modo capitalista de produção, em que os animais são tratados como produtos e desde o primeiro dia de eclosão ou de nascimento são submetidos aos mais terríveis sofrimentos e torturas, pois nenhuma melhora em suas condições é feita se ocasionar em aumento dos custos ou redução do lucro. O sofrimento não se dá apenas na hora da morte, mas em toda a vida (ou melhor, em todo o processo produtivo) do animal. Todos os custos são externalizados, tudo obedece à lógica de mercado. E essa pode bem ser uma boa forma de atacar o processo: se nós não comprarmos mais animais, as bandejas com carne vão apodrecer nos supermercados. Muitos pensam “bem, eu vou comprar, pois o animal já está morto mesmo!”; mas neste caso você estará alimentando o sistema, estará fazendo os bens de consumo (que são os animais, na ótica capitalista) fluirem e outros animais serão mortos. Se todos parássemos de comprar carne, certamente bandejas e mais bandejas apodreceriam nos supermercados, mas o capitalismo se autorregula: os supermercados comprariam menos do fornecedor, que compraria menos do distribuidor e assim por diante, até uma situação utópica em que não haveriam mais essas fábricas de sofrimento animal. Isso dito, confesso que poderia comer uma galinha criada em quintal, solta, e que a matássemos de forma que eu pudéssemos nos assegurar que seu sofrimento foi o menor possível; ainda assim, prefiro deixá-la viva e observar o que ela faz. Outro ponto importante é lembrar que na dita “natureza” o número de pessoas no início do neolítico não chegava a 5 milhões, ou seja, quase 1400 vezes menos gente que nos dias de hoje. Dada a quantidade absurda de pessoas no mundo atual, simplesmente não há mais como criar animais em fazendas da forma como se criava há cem anos, em que os animais tinham uma vida bem menos torturada antes do abate (isso não é uma justificativa para a existência das atuais fábricas de tortura; é, ao contrário, mais uma evidência a favor da retirada dos animais da dieta humana).
Em relação àqueles que se preocupam genuinamente com sua saúde, deve-se dizer que o grande problema da humanidade com os vegetais não foram os vegetais em si, mas a famigerada revolução agrícola. Deixe-me explicar melhor: um ser humano coletor (e ainda há culturas na África e na América onde não se desenvolveu a agricultura, e as pessoas são coletoras) ingere em média 60 a 70 diferentes espécies vegetais, e esse número pode ser bem maior dependendo da região. A revolução agrícola foi uma maravilha ao trazer calorias baratas e permitir o assentamento dos seres humanos e o desenvolvimento das primeiras cidades, mas a que custo? A partir da revolução agrícola, o ser humano reduziu drasticamente sua variedade alimentar: na Europa, a agricultura resumia-se basicamente ao trigo, enquanto na América resumia-se basicamente ao milho. O ser humano passou a ser um comedor de amido, com uma boa dieta calórica mas pobre em proteínas, em vitaminas e numa série de outros nutrientes. Comparado a um ser humano coletor, que comia os mais diversos vegetais, o comedor-de-trigo europeu do início da idade do bronze não passava de uma criatura pálida, esquálida e mal-nutrida. Portanto, se você está considerando a opção de parar de comer animais, lembre-se: é fundamental ter uma grande, ou melhor, uma enorme variedade de espécies em sua dieta. Se você tirar a carne do prato e comer apenas as batatas sua saúde vai cair perceptivelmente. Ser vegetariano, portanto, não é apenas tirar os animais do prato, mas rever e reelaborar o conteúdo não-animal deste prato.
Por fim, é hora de sumariar aos principais motivos pelos quais eu não como animais. Em relação ao que denominamos radicalismo, vale a pena lembrar que, de acordo com os argumentos que eu usarei abaixo, não é necessário que você seja um vegetariano estrito para diminuir o sofrimento animal ou reduzir a destruição dos ecossistemas. Se você deixar de comer animais uma vez por semana, ou duas, ou se possível uma dieta dia sim/dia não, já é uma grande contribuição. Certamente, contudo, o melhor seria parar definitivamente. Eis os motivos:
  1. Eficiência de cadeia: Isso é algo que se aprende nas aulas de ecologia. Eficiência de cadeia é a quantidade de energia que efetivamente passa de um nível trófico para outro. Matematicamente é E(n+1)/E(n). Na maior parte das cadeias alimentares, a eficiência de cadeia varia entre 0,01 e 0,1, indicando que a porcentagem de energia que passa de um nível para outro varia entre 1% a 10%. A maior parte dos alunos de ecologia sabe o que isso quer dizer: as pirâmides ecológicas de energia são tais que cada nível é sempre maior que todos os outros níveis acima dele somados. Na prática, isso quer dizer que se você come animais sua pegada ecológica é bem maior, pois você demanda uma área do planeta bem maior. Exemplificando: Amanda e Raquel requerem 1000 Kcal, e logicamente 1000Kcal de carne é igual a 1000Kcal de feijão. Amanda é vegetariana, e requer do planeta uma área de 40 hectares (estou inventando os números) para obter suas calorias; Mas Raquel come carne, e para obter as mesmas calorias que Amanda, requer 500 hectares do planeta para sustentá-la. Assim, se você se preocupa com a destruição da Amazônia, a melhor atitude imediata que você pode tomar é essa: pare de comer animais. “Mas boa parte do desmatamento na Amazônia ocorre para plantar soja”, você pode alegar. E você acha que essa soja é para alimentar seres humanos?
  2. Economia de água: Você é uma pessoa que fecha a torneira ao escovar os dentes, o que é louvável. Com isso, vamos supor que você economize algo em torno de 10 litros por dia, o que nos daria uns 3 mil litros de água por ano. Isso não é nada comparado a 7,5 milhões de litros de água por ano, que é o que você economiza parando de comer animais. O conceito relaciona-se com a eficiência de cadeia já discutido acima: gasta-se 100.000 litros de água para produzir 1 quilo de bife, mas apenas 500 litros de água para produzir 1 quilo de batata.
  3. Emissão de gases estufa: Ainda utilizando o conceito de eficiência de cadeia, é fácil perceber que para produzir 1000 Kcal de carne há liberação atmosférica de muito mais gases estufas que o necessário para produzir 1000 Kcal de trigo. Em países como os Estados Unidos a produção industrial de animais é responsável por mais gases estufa que o setor de transportes.

    Emissão de gases estufa por setor. “Farming” inclui a criação de animais (Fonte: IPCC).
  4. Sofrimento animal: Desnecessário explicar que o atual modo de produção capitalista inflige um grau de sofrimento aos animais muito maior que o mais embrutecido machão julga capaz de assistir. Há bons documentários sobre o assunto, como “Earthlings”:


Apesar de tudo isso, apesar do que parece ser bastante óbvio, optar consciente e voluntariamente por parar de comer animais ainda é visto como uma atitude de quem tem pouco juízo. Será que a maioria das pessoas sente prazer em ver o sofrimento de outros animais, ou é apenas uma questão de acomodação, de não querer pensar nisso? Creio que se trata mais de acomodação, de não querer saber do sofrimento ao qual foi submetido o animal que se está comendo. E, se esse é o caso, será que não deveríamos respeitar as poucas pessoas que pensam sobre isso e tomam uma atitude?

Autor: Gerardo Furtado

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